“A literatura é o domínio da metáfora da escrita, da forma alegórica da narrativa que diz sobre a realidade de uma outra forma, para dizer além.”
Sandra Jatahy Pesavento
O que têm em comum entre a Ilíada e a Odisseia de Homero, Os Lusíadas de Camões, a Eneida de Virgílio, e o Goyania de Manoel Lopes de Carvalho Ramos? Eles são poemas épicos, que se consolidaram, ou pelo menos tentaram se consolidar como mito de fundação de uma nação. A epopeia é uma estrutura poética narrativa escrita em versos, dividida em cantos, que nasceu na Antiguidade e entrou em decadência no século XVIII, quando o romance, uma narrativa em prosa, toma seu lugar. O protagonista deste estilo literário é um herói, virtuoso, que supera obstáculos, trava guerras, vence batalhas, é obstinado a cumprir sua missão e tem seu heroísmo idealizado pelo autor. Ulisses, Odisseu, Vasco da Gama, Eneias, todos eles desempenham um papel central em suas respectivas histórias. Ou são homenageados e representados com veneração, como é o caso de Bartolomeu Bueno da Silva (o Anhanguera Filho), em Goyania.
As epopeias mencionadas compartilham algumas características como o cuidado com os versos, o lirismo, um contexto mitológico específico, a exaltação à ideia de nação, um encadeamento de ações, entre outros elementos que conferem singularidade ao poema épico em sua estrutura, conteúdo e elementos. No entanto, destaca-se uma delas por sua excepcionalidade: é uma narrativa escrita em um tempo que não mais era para a épica, redigida em um contexto geográfico incomum, o sertão goiano.
Este poema enaltece os feitos de uma bandeira paulista, que também são chamadas de descidas e eram expedições que partiam de São Paulo para colonizar o interior do país, financiadas ou pelos próprios participantes, geralmente pelo líder, ou pela coroa portuguesa. O autor deste poema buscou, assim como aqueles que escreveram no estilo épico, engendrar um mito literário para a fundação da nação, neste caso específico, para a fundação de um estado: Goiás.
Podemos caracterizar a epopeia também como uma representação da realidade. Entendo como representação, ancorada nas ideias de Chartier (2002), uma imagem cultural e socialmente construída. Os seres humanos criam símbolos, narrativas e imagens de acordo com suas experiências e visões de mundo, fazem isso através da linguagem, da arte, da literatura e de outros meios. Tais representações não são reflexos de uma sociedade ou uma cópia perfeita do meio social, elas são interpretações da própria realidade que interferem na maneira como os seres percebem e compreendem o mundo. Dessa maneira, o poema Goyania é uma representação, à medida em que seu autor interpreta aquilo em que tem acesso, neste caso, os documentos históricos, assim como sua própria visão de contextos (intelectual e pessoal) e realidades que o cercam.
Goyania retrata, sobretudo, a narrativa dos acontecimentos que se desenrolaram com a chegada e instalação de Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido como o Anhanguera Filho, e sua comitiva às terras que tempo depois se tornariam o que hoje é o território do Estado de Goiás. Seu autor, Manoel Lopes de Carvalho Ramos, não é natural de Goiás, nasceu em Cachoeira (Bahia). Segundo Ademir Hamú (2023), concluiu o curso jurídico em Recife, lecionou e advogou por muito tempo em sua cidade natal e ao se mudar para Goiás, por volta de 1892, foi Juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca da então capital, nomeado por decreto no mesmo ano. Sua vida literária esteve para além da escrita poética, pois participou ativamente da agitada sociedade letrada vilaboense, tornou-se diretor por duas legislaturas do Gabinete Literário Goiano, até ser presidente, em 21 de abril de 1895. Na Cidade de Goiás foi também colaborador do Goyaz, semanário fundado por Félix de Bulhões. É pai do consagrado escritor Hugo de Carvalho Ramos e também de Victor de Carvalho Ramos. Grande entusiasta do romancista francês Victor Hugo, autor de obras como Os Miseráveis e Trabalhadores do Mar, distribuiu entre os dois filhos o nome como forma de homenageá-lo.
O poeta dominou a literatura no fim do século XIX e tornou-se o líder intelectual de sua época, que ficou órfã depois da morte de Félix de Bulhões. Goyania não foi o único livro que deixou, apesar do autor ser conhecido por ele, sua obra possui frutos para além da epopeia, como destaca Gilberto Mendonça Teles em A poesia em Goiás:
Dentre os livros que deixou citam-se: Flôres da Primavera e Inspirações noturnas, ambos de 1884; Álvares de Azevedo, drama em prosa, em quatro atos, publicado em 1884; o poema Edgar, de 1885, o poema épico Goyania de 1896, em vinte cantos de oitavas rimas [...] hoje considerado parte do Patrimônio Estadual [...]; Os Gênios, poesias de 1895; Epopéia do 1º de julho, versos heróicos em seis partes, com que comemorou a Constituição goiana. (Teles, 2018, p. 106).
Manoel Lopes de Carvalho Ramos pretendia reunir seus poemas avulsos em um único livro, sob o título de Minhas Poesias. Deixou também outras obras inacabadas. Para o escritor e crítico literário, sua poesia constituiu-se como a maior influência de Gonçalves Dias, Castro Alves e Victor Hugo em Goiás.
Segundo Paula (2007), a epopeia goiana ganhou três edições: a primeira apareceu no rodapé do Jornal Goyaz, em 1891. A segunda foi produzida em Porto (Portugal), em 1896 e custeada pelo tesouro estadual de Goiás. A terceira é uma edição fac-similar, também patrocinada pelo governo do Estado em 1980.
É preciso mencionar que na pedra fundamental de Goiânia está enterrado um exemplar deste livro, cujo nome está associado ao da capital. A escolha do nome teria sido uma adaptação da escrita e do som de Goyania, que de poema, se tornou topônimo.
A temática, que gira em torno da chegada dos bandeirantes e seu encontro com os indígenas Caiapós, possui também elementos que conotam uma exaltação à natureza, ao povo, e à cultura goiana. O Goyania é uma versão poética sobre os fatos, ele se apoia em acontecimentos reais e o autor utiliza sua pequena bibliografia para sustentação histórica, como o relato do Padre Manoel Ayres do Casal, sobre a bandeira do Anhanguera, presente na Corografia Brazílica.
Há uma certa verossimilhança histórico-literária, mas é condicionado à imaginação livre, não possui compromisso com o real, e nem precisa possuir, pois trata-se de um gênero que, entre outras características, utiliza da idealização e narra os acontecimentos como deveriam, ou poderiam ser. Manoel Lopes de Carvalho Ramos é poeta, e não historiador, dessa forma apresenta a sua “versão” da “conquista” de Goiás.
O leitor consegue reconhecer, em quase todos os 20 cantos, a exaltação de Bartolomeu Bueno da Silva, o herói homenageado dessa epopeia: “Bartolomeu Bueno nada teme, E, como heróe de Homero, a glória freme” (Ramos, 1896, p. 232), no prólogo, o autor explica sua diferenciação com os demais: “O meu heróe não tem a estatura de um Gama, nem as attracções mysteriosas dos nobres cavaleiros da Jerusalem Libertada. O meu heróe é um homem dedicado conscientemente ao trabalho, mas singelo. [...] Bartolomeu Bueno nasceu heróe.” (Ramos, 1896, p. 11). Para ele, na epopeia do Brasil, o Anhanguera Filho é uma figura eminente.
No poema de Manoel Lopes de Carvalho Ramos, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, tem seu protagonismo heroicizado, mas na historiografia sua figura é ambígua. De acordo com Davidoff (1994, p. 85), intelectuais como Southey, Saint-Hilaire e posteriormente Oliveira Martins, Oliveira Vianna, A. E. Taunay, Alfredo Ellis e Cassiano Ricardo colaboraram de alguma forma para a consolidação da imagem heroica do bandeirante. Segundo o autor, na perspectiva dos estudiosos das bandeiras da primeira metade do século XX, o bandeirante era estimado como um elo fundamental da constituição e permanência do povo brasileiro e do Estado nacional.
Há, entretanto, uma outra visão sobre a persona do bandeirante. Essa perspectiva recoloca em cena a violência cometida contra os indígenas, e é encontrada na obra de Capistrano de Abreu (1998). Ele utiliza os relatos do padre Montoya sobre as práticas de violência e genocídio praticadas pelos bandeirantes para apresamento de indígenas, bem como questiona o valor da expansão territorial a eles atribuída. Alcântara Machado (1929) contribuiu também para a dessacralização do mito do bandeirante. Apresentou-o como um homem simples, retirando suas pompas militares e o tom epopeico sobre a narrativa do bandeirantismo ao passo em que enfatizava o estudo sociológico da vida material e cotidiana desse ser paulista.
A ambiguidade do bandeirante não é presente somente na historiografia. Por muito tempo, sua imagem foi a representação que se firmou, promovida a símbolo, idealizada e, possivelmente, uma das imagens mais cultivadas pelos brasileiros. Todavia, ao analisar a atual conjuntura, o ethos do bandeirante paulista vem sendo questionado e, para alguns setores da sociedade, passou de herói a anti-herói, ou simplesmente vilão. Basta fazer uma leitura das manifestações públicas que ocorreram no Brasil em meados de 2021, que colocaram em xeque as honrarias feitas a eles.
Mas afinal, seria Bartolomeu Bueno da Silva herói ou não? Para Manoel Lopes de Carvalho Ramos e sua epopeia sobre a fundação de Goiás, não restam dúvidas. É herói como Ulisses, Odisseu, Vasco da Gama, e Eneias, com sua diferença de homem mais “singelo”. Sua tentativa era a de elevar o poema a um status grandioso, como se tornaram as clássicas Ilíada e Odisseia, Os Lusíadas e Eneida. Seria ele digno de comparação? Em seus conteúdos não é possível comparara-los, já que foram construídos em tempos e realidades diferentes, para contextos díspares. Esteticamente acredito que sim, não há como negar que Goyania é um poema riquíssimo e muito bem construído. Agora só resta ao leitor tirar suas próprias conclusões, e não há outra maneira de se fazer isso a não ser apreciá-lo (com um bom vinho, inclusive)!
REFERÊNCIAS:
ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Oeiras: Difusão Editorial S.A, 2002.
DAVIDOFF, Carlos Henrique. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Editora da UFG, 1988.
HAMÚ, Ademir. Victor e Hugo de Carvalho Ramos. Goiânia: Contato Comunicação, 2023.
MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1929.
PAULA, Luciano Melo de. Goyania, a épica romântica da conquista de Goiás. 2007. 129 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007.
RAMOS, Manoel Lopes de Carvalho. Goyania. Porto: Typ. A Vapor de Arthur J. de Sousa. 1896.
TELES, Gilberto Mendonça. A poesia em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 2018.
Larissa dos Santos Freitas é mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo
Programa de Pós-graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da
Universidade Estadual de Goiás. Possui graduação em História pela Universidade
Estadual de Goiás - Unidade de Ciências Humanas e Socioeconômicas Nelson de Abreu
Junior. Suas pesquisas se debruçam sobre História e Literatura em Goiás, com foco no
diálogo entre ambas as áreas, reconhecendo a Literatura como fonte para História e rica
manifestação artística e cultural de uma sociedade.
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