Os hábitos alimentares são um aspecto que tem muito a informar a respeito de certa cultura. Muito além de apenas refletir a necessidade de consumir os nutrientes necessários para a manutenção de um corpo saudável, o modo pelo qual uma sociedade se alimenta
Caracteriza-se também como ato social na relação entre pessoas que proporciona convívio, diferenças, expressa o mundo da necessidade, da liberdade e da dominação. Os padrões alimentares de um grupo colaboram com a identidade coletiva. (PÌNHEIRO, 2005, p. 174)
Desse modo, compreende-se que os hábitos alimentares têm muito a dizer de uma forma que a sociedade se organiza. Porém, é importante se atentar ao fato que os aspectos ambientais do meio em que a sociedade se insere têm influência em sua cultura, e as práticas alimentares não são uma exceção. É isso que aborda o viés da eco-história, que busca entender
Como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural e inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados. (WORSTER, 1991, p. 199-200)
Com a sociedade goiana, não foi diferente, como buscarei elucidar. O exemplo mais comum é o milho. A cultura desse alimento já era comum em território brasileiro pelos indígenas. Entretanto, segundo Bertran (2011), é no século XVIII, no período da economia mineradora, que o cultivo de milho ganha maior importância na alimentação com uma perspectiva proteica. Isso se baseava em uma teoria chamada trinômio vegetal, a qual elaborava um modo de produzir os alimentos com as proteínas necessárias para a alimentação por meio de três itens: milho, abóbora e mandioca.
Era possível utilizar esses artigos alimentícios para a criação de suínos e galináceos, além de produzir farinhas, bolos e pamonhas, garantindo uma diversificação da alimentação na mesa dos goianos. Desse modo, em um bioma que apresenta características desfavoráveis a diversos tipos de cultivos, esses três itens aparecem como uma solução para manter uma dieta com outros nutrientes de origem animal, sendo importantes para toda uma produção alimentar, a exemplo da plantação de milho verde que, de acordo com Moraes (2009), pode ser realizada durante várias estações do ano por meio apenas de irrigação, considerando apenas a agricultura familiar, facilitando seu plantio. Percebe-se a importância no milho quando a poetisa Cora coralina, em um período histórico posterior, cita:
Sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor
Que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho (CORALINA, 2012, p. 114-115).
Os aspectos culturais também tiveram forte influência na culinária local. Segundo Kuwae, Monego e Fernandes (2009), os hábitos alimentares goianos sofreram mudanças após a abertura dos portos no século XIX, ocorrendo um intercâmbio cultural no âmbito culinário, com a inserção de outros produtos como queijos e a azeitona, além de preparação de pratos comuns da culinária portuguesa, tais como pastéis e empadas. Somam-se as práticas europeias com as práticas alimentares dos indígenas presentes na região (plantio de milho, mandioca e banana e coleta de pequi) e dos negros africanos, como o consumo de toucinho e carne e doces com frutas e melaço de cana, e tem-se a miscigenação alimentar que culminou nos principais hábitos alimentares goianos.
Sendo assim, as culinárias indígena, africana e portuguesa resultaram na miscigenação de alimentos e técnicas culinárias que difundiram o consumo da guariroba, mandioca, milho, banana, amendoim, abóbora e também na elaboração de pastéis, doces açucarados, bolos, pirão, canjica, pamonha, pão de queijo e outros pratos que se tornaram símbolos da cultura goiana (KUWAE, MONEGO E FERNANDES, 2009, p. 36)
Ainda culturalmente, cabe ressaltar a influência de Cora Coralina na mesa dos goianos nas décadas de 60 e 70. Paulo Bertran a aponta como um dos expoentes que moldou a cultura alimentar goiana ao ressaltar que:
Quando D. Cora voltou a Vila Boa depois de meia vida no estrangeiro de São Paulo, trazia um vasto conhecimento de padeira e quituteira e realizou grande releitura de velhas receitas, dividindo os resultados com outras mestras da Cidade de Goiás. A mistura de poesia e de culinária produziu efeitos devastadores – e Cora soube tão bem misturá-los – que a partir daí surgiu uma forma de exaltação poética do de-comer (BERTRAN, 2011).
Desse modo, muito além de fruto de um intercâmbio a nível Brasil-mundo, percebe-se que o modo de se alimentar dos goianos é fruto também de relações regionais. Além de São Paulo, algumas práticas foram adquiridas na região do triângulo mineiro. A região pertencia ao bispado de vila boa, e para se adequar a alimentação dos padres estrangeiros, as matronas, mulheres responsáveis por funções administrativas nas instituições eclesiásticas, faziam uso de uma culinária diferente.
Portanto, depreende-se que a riquíssima cultura alimentar goiana é fruto tanto de fatores ambientais do Cerrado quanto de aspectos culturais provenientes de intercâmbio entre diferentes culturas com práticas alimentares distintas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTRAN, Paulo. História do Homem e da Terra no Planalto Central. Brasília: Edit
ora da UNB, 2011.
CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Editora Global. 2012.
KUWAEM, Christiane Ayumi; MONEGO, Estelamaris Tranco; FERNANDES, Joana Aparecida. (Trans)formações de Hábitos Alimentares dos Goianos. CERES, Goiânia, V. 4, p. 33-41, 2009.
MORAES, Rocha Almeida de. A Cultura do Milho Verde. 2009. Artigo em Hypertexto, infobibos.Disponivel em <http://www.infobibos.com/artigos;2009_2/MilhoVerde/index.htm>. Acesso em: 31 de Jul. de 2024
PINHEIRO, Karina Aragão de Paula Nobre. História dos Hábitos Alimentares Ocidentais. Universitas Ciencias da Saúde, São Paulo, V. 3, n. 1, p. 173-190, 2005.
WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V. 4, n. 8., p. 198·215, 1991.
Brunno Soares é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo programa de Pós-graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual
de Goiás. Suas pesquisas abordam a área da historiografia goiana.
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